Promotores dizem que a situação na fundação atingiu “patamares inimagináveis”. Superlotação é tanta que menores estão sendo liberados.
A situação da Fundação Casa atingiu “patamares inimagináveis”. A avaliação é do Ministério Público de São Paulo. Na última quarta-feira 6, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital denunciou na Justiça o governo do tucano Geraldo Alckmin e a fundação, por conta da superlotação nas unidades que aplicam as medidas socioeducativas para menores detidos no estado. A reportagem de CartaCapital teve acesso com exclusividade à ação civil pública e, segundo o documento, 91,37% das “casas de internação” estão com um número de adolescentes acima do limite máximo definido nas portarias administrativas.
A informação é resultado de um
diagnóstico inédito da Promotoria, iniciado em março de 2013. Seis
promotores lideraram o trabalho: Tiago de Toledo Rodrigues, Pedro
Eduardo de Camargo Elias, Fábio José Bueno, Daniela Hashimoto, Santiago
Miguel Nakano Perez e Fabíola Aparecida Cezarini. Eles catalogaram o
número de menores internados nas unidades em cada visita mensal. Com
isso, o MP descobriu que 106 das 116 unidades de internação do estado
têm mais adolescentes do que podem abrigar. Foram contabilizadas 8.079
vagas em todo o sistema, enquanto a demanda é de pelo menos 9.549 vagas.
Isso quer dizer que o déficit hoje é de 1.470 vagas, equivalente a
18,19% do oferecido atualmente.
“A situação, de séria gravidade,
configura flagrante desrespeito aos direitos humanos dos adolescentes”,
diz o texto da ação. Em uma das unidades visitadas pelos promotores, a
superlotação era de 158,33% acima da capacidade. O flagrante foi feito
na unidade Sorocaba IV, no interior do estado. Com capacidade para
receber 24 internos, estava com 62 em abril. Na capital paulista, a
situação mais grave foi constatada na unidade Rio Paraná, no bairro do
Brás. Com espaço para 110 menores infratores, alocava 198 adolescentes –
também em abril.
O cenário, classificado pela Promotoria
como “calamitoso” e um “horror”, obrigou o órgão a pedir judicialmente
soluções em até um ano. Se aceita pela Justiça, a ação estipula que a
Fundação Casa tem seis meses para criar as vagas, de sorte a atender à
demanda excedente em seis meses, sob pena de multa diária de 10 mil
reais por vaga não oferecida. Foi pedido ainda o fechamento das unidades
e o afastamento provisório dos dirigentes da Fundação Casa, gerida
atualmente pela presidente Berenice Maria Giannella. Se não criar
nenhuma das vagas pedidas pelos promotores, o estado terá de pagar multa
de 14,7 milhões de reais por dia.
A ação determina ainda o prazo máximo de
um ano para a Fundação Casa adaptar todas as suas unidades, de acordo
com o que define o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente. O Conanda estabelece que 40 vagas é o máximo que cada
unidade deveria ter para garantir o caráter individual da
ressocialização dos adolescentes. “Uma unidade projetada para receber
110 menores, por exemplo, tem de ter em seis meses, no máximo, esses
110. Em um ano, tem de ser uma unidade só para 40 internos (número considerado ideal pelo Conselho)”, explica o promotor Pedro Eduardo de Camargo Elias.
Maus-tratos e multas milionárias
Essa
deve ser a maior dificuldade da gestão tucana para ajustar a antiga
Febem ao pedido da Promotoria. Do total de unidades superlotadas, só
quatro já têm como capacidade máxima o número de 40 internos. As outras
teriam de ser desmembradas para alcançar as condições mínimas para
recuperação do adolescente. A pena deve ser a mesma: multa diária de 10
mil reais por vaga não oferecida.
Além
disso, o governo Alckmin terá de apresentar num prazo máximo de três
meses um cronograma detalhado, “descrevendo as medidas já adotadas e as
que serão implementadas para o atendimento dos itens”. Caso não faça
isso, o MP determina mais uma multa: 1 milhão de reais por dia.
Finalmente, os promotores colocam como último pedido da ação civil uma
exigência ao estado: em seis meses deve começar a ser feito um
planejamento para atender à demanda futura, com base em projeção de
aumento de internos.
A conclusão dos promotores é de que, se continuar
do jeito que está, a Fundação Casa “acabará como uma nova Febem”. “Se a
Fundação Casa mantiver as coisas no curso atual, nós estamos
caminhando, sim, para um cenário em que a Fundação Casa voltará a ser
aquilo que era a Febem”, alerta o promotor Tiago de Toledo Rodrigues.
A comparação
encontra respaldo em diversos pontos da ação civil. Na ação está
descrito um quadro de “tensão ininterrupta” causado pela superlotação
das unidades. Faz parte do cotidiano dos menores, por exemplo, “dormir
na praia”, gíria interna que significa passar a noite no chão, muitas
vezes sem colchão. O mesmo acontece nas salas de aula. Todas foram
planejadas para receber um número máximo de internos. Não é o que
acontece. Segundo a Promotoria, isso pode afetar totalmente a
recuperação dos menores, que acabam não encontrando ajuda para não
voltarem a cometer crimes.
A situação é idêntica no refeitório, em
banheiros, áreas comuns e de lazer. São necessários rodízios no horário
do almoço, do banho e de todas as demais atividades rotineiras. Com
comida fria, sem banho e com problemas para fazer atividades físicas ou
de ressocialização, os adolescentes ficam estressados e,
consequentemente, os funcionários também. “O ambiente, inóspito,
diuturnamente dá causa a outros transtornos. Há crescente e
significativo aumento dos conflitos entre os adolescentes. Não raro
esses conflitos envolvem também funcionários que, igualmente, são
expostos a sérios riscos”, denuncia a ação do MP.
Libertação de menores
A reportagem também teve acesso a um
relatório feito pela primeira vez na mesma Promotoria sobre o processo
de liberação dos menores. De três em três meses, a Fundação Casa é
obrigada a fazer um relatório técnico sobre todos os adolescentes
internados. Neste documento, o órgão explica como está o processo de
ressocialização de cada um dos jovens e conclui se eles estão prontos
para voltar às ruas, se devem continuar em “tratamento” ou se podem
começar uma “desinternação progressiva”, situação na qual o jovem pode
passar para “Liberdade Assistida”, por exemplo.
Em julho, o Ministério Público analisou
todos os documentos que recomendavam a desinternação. Nesse período de
um mês, a Fundação Casa pediu a soltura ou relaxamento das medidas
socioeducativas para 273 adolescentes. Desse total, quase 95% é para
jovens com menos 13 meses de internação, quando cada adolescente pode
ficar até três anos no sistema. O caso levanta a suspeita de que a
Fundação Casa esteja liberando os adolescentes para evitar que o sistema
entre em colapso.
A ação foi entregue a CartaCapital
na mesma semana em que o governador Geraldo Alckmin foi a Brasília
justamente para pedir penas mais duras a menores infratores. Na
terça-feira 5, Alckmin encontrou-se com lideranças do PSDB na Câmara dos
Deputados para pedir votação com urgência para o projeto de seu colega
de partido que reduz a maioridade penal. Em caso de aprovação, o projeto
pressionaria ainda mais o sistema já saturado.
O fato é que a superlotação já tem
colocado na rua jovens que precisam passar por medidas socioeducativas
para se reintegrar à sociedade. Em março, um adolescente que havia sido
detido em uma delegacia de Dracena, no interior do estado, foi solto
depois de cinco dias, porque a Fundação Casa não tinha vaga.
Procurada pela reportagem, a Fundação
Casa informou que ainda não foi notificada da ação, mas argumentou que a
superlotação é culpa da Justiça paulista. “O excedente que existe na
instituição deve-se, principalmente, às exageradas internações.”
Procurado, o governo do estado não se manifestou sobre a ação do
Ministério Público.
(Carta Capital)
(Carta Capital)
Nenhum comentário:
Postar um comentário