Na Bahia, o grito “independência ou morte” ganhou sentido literal,
contrariando a generalizada imagem de uma separação pacífica de
Portugal, como a que ocorreu pela ação das elites no Centro-Sul do
Brasil. De fevereiro de 1822 a julho de 1823, ocorreu um conflito no
Recôncavo Baiano que mobilizou a população livre, mulheres e escravos,
de maneira tão marcante que a vitória brasileira é comemorada até hoje
em uma das maiores festas cívicas do País.
Uma série de acontecimentos, como a vinda da Família Real (1808), a
elevação do Brasil a Reino Unido (1815) e a Revolução Liberal do Porto
(1820), criou expectativas de autonomia política e econômica nas elites e
classes médias brasileiras, com relação a Portugal. Tais expectativas,
porém, acabaram frustradas quando Lisboa tomou medidas para restabelecer
o controle colonial: intimaram o retorno do príncipe regente dom Pedro e
nomearam chefes militares nas províncias, que deveriam obedecer
diretamente a Portugal.
Na Bahia, a nomeação do português Inácio Luís Madeira de Melo, em
detrimento do brasileiro Freitas Guimarães, foi o estopim do conflito.
Em fevereiro de 1822, deflagrou-se um confronto entre soldados reinóis e
nativos que se alastrou pela população civil e terminou com a ocupação
militar de Salvador, apoiada pela abastada elite comercial lusitana
residente.
Por conta do conflito, militares e civis brasileiros deixaram a capital
Salvador rumo às matas de entorno da cidade ou ao Recôncavo Baiano. Na
época, essa era uma rica região em torno da Baía de Todos os Santos que,
através do Rio Paraguaçu, intermediava o comércio da capital com o
Sertão e produzia mantimentos para subsistência, além de fumo e açúcar
para exportação. No Recôncavo, organizou-se a reação política
brasileira. Em junho de 1822, dom Pedro foi aclamado pelas câmaras
municipais, o que significava apoiar o príncipe regente no Rio de
Janeiro (e contrariar Portugal).
No dia 25 de junho, brasileiros da vila de Cachoeira que festejavam a
aclamação foram bombardeados por uma barca enviada pela capital para
bloquear o Paraguaçu, capturada dias depois após combates. As câmaras
das outras vilas da Bahia formaram um conselho interino que, com sede em
Cachoeira, governou a província e mobilizou contingente para combate,
enquanto as forças de Madeira de Melo iniciavam movimentações para
retaliação. Iniciou-se então uma guerra que culminou no cerco brasileiro
a Salvador, com batalhas em áreas próximas da cidade, no mar ou na ilha
de Itaparica.
As forças portuguesas chegaram a ter 10 mil efetivos profissionais. Já
as tropas baianas foram inicialmente organizadas em milícias. Eram
lideradas pelos proprietários brancos do Recôncavo e integradas por
militares, homens livres de todas as raças e profissões, escravos
enviados pelos senhores, além de barcos de guerra improvisados,
liderados por João das Botas, um português fiel a dom Pedro. A esse
contingente, somou-se o reforço vindo do sertão, de lavradores,
vaqueiros e até índios. Mais tarde, chegaram brasileiros recrutados no
Rio de Janeiro e no Nordeste, liderados pelo general francês Labatut e o
almirante britânico Lord Cochrane.
Como relatam em suas cartas, o desafio desses mercenários contratados
pela Corte do Rio foi organizar um exército e uma marinha para o país
já independente com pessoas sem experiência alguma de batalha. Dão uma
ideia do caráter popular dessa ampla mobilização de 12 mil combatentes
(fora os acompanhantes), a qual propiciou uma inédita convivência entre
pessoas de sexo, classes e províncias diferentes.
Apesar de unidos pelo desafeto aos portugueses, que endividavam os
endinheirados e especulavam com os gêneros de subsistência necessários
aos livres em geral, os brasileiros nem sempre tinham as mesmas
aspirações. Dessa maneira, os proprietários abastados do Recôncavo
tomaram as rédeas do processo porque temiam “que algum espírito mal
intencionado mova o povo em excessos anárquicos, ou desviem-se do
sistema monárquico constitucional”. Tratava-se de uma referência às
ideias de separação e república federativa que, tendo inspirado os
pernambucanos em 1817, já alcançavam os baianos. Até mesmo escravos
reivindicaram direitos a seu favor, como relata escandalizada uma
senhora de engenho e esposa de deputado da Constituinte em Lisboa: “A
crioulada da Cachoeira fez requerimentos para serem livres. Estão tolos,
mas a chicote tratam-se! Aviso-te mais: que, em nome dos cativos daqui,
há aí quem meta às Cortes requerimentos”. Já na fase da guerra fugiram e
se alistaram nos batalhões com o fim de conseguirem – e alguns com
sucesso – a liberdade.
As mulheres também saíram do papel de vivandeiras, limitadas a
acompanhar a tropa para cozinhar e cuidar dos feridos. A negra Maria
Felipa, por exemplo, organizou as conterrâneas numa emboscada contra
portugueses que tentaram invadir a ilha de Itaparica. Já a filha de
lavradores Maria Quitéria fugiu de casa, cortou o cabelo e, fantasiada
de homem, alistou-se nos batalhões patrióticos. Tendo aprendido a atirar
na fazenda do pai ao caçar animais, Maria Quitéria destacou-se ao ponto
de ser promovida pelos superiores. Quando os conflitos acabaram, foi
para o Rio “para ser apresentada ao Imperador, que lhe deu o posto de
alferes e a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em
sua túnica”, como conta a escritora britânica Maria Graham, que a
conheceu na ocasião. Felipa e Quitéria são exemplos de como o
protagonismo popular tornou porosos os papeis e fronteiras sociais
naquele ano de guerra. Com seu fim, a despeito de promoções e alforrias,
a nova monarquia recolocou as pessoas nos seus devidos lugares, segundo
as antigas hierarquias, com os privilegiados da terra no poder e
devolvendo escravos fugidos a seus senhores.
O grosso dos combatentes brasileiros estava exposto ao inimigo, à
comida escassa, ao atraso nos soldos e a doenças. Após a fuga de navio
de Madeira de Melo e dos soldados portugueses em 2 de julho de 1823, as
tropas que acompanhavam os oficiais do Exército Pacificador na retomada
de Salvador “apresentavam o quadro das mais extremosas privações; sem
fardas, sem calçado; mas ornados da sua nudez e ricos de seus
sofrimentos”. Os vitoriosos foram recebidos pelos soteropolitanos,
desesperados pela falta de provisões. A “riqueza do sofrimentos” era
generalizada, agravada pela economia baiana arruinada pelo conflito.
Restou o apelo às formas da tradição: ainda no dia da vitória soldados
meteram folhas verde-amarelas e um velho índio sobre uma carroça e
saíram em festa pela cidade, comemorando o fim da “tirania portuguesa”.
Desde então, o cortejo de entrada da tropa brasileira na cidade se
repete com ampla adesão popular, fazendo referências aos tipos e
personagens da guerra de independência na Bahia. Para tomar um exemplo:
simbolizando a força do brasileiro, em 1826 o Caboclo passou a ser
representado pela estátua de um índio guerreiro, à frente de um grupo de
brasileiros que saíam às ruas para agredir portugueses aos gritos de
“mata maroto”. Na década de 1830, a tentativa de arrefecer o ânimo
agônico levou à incorporação de uma esposa, a Cabocla, que expressa a
conciliação entre lusitanos e brasileiros por ser inspirada em Catarina
Paraguaçu.
Nas primeiras décadas da República, o caboclo e a cabocla
sobreviveram à investida de grupos dirigentes que, inspirados nos ideais
evolucionistas, queriam sanear a festa de símbolos tidos como
primitivos e práticas devocionais consideradas supersticiosas. É o caso
dos bilhetes com pedidos de graça que até hoje podem ser encontrados na
carroça da imagem e, junto da contrição, expressam a dimensão religiosa
incorporada ao cortejo cívico.
Nesses quase dois séculos, o cortejo de 2 de julho expressou
conflituosas identidades, representações e relações sociais, aí inclusas
a autopromoção dos grupos dirigentes do Estado e a insatisfações de
diversos grupos subalternos. Em 2012, enquanto os candidatos à
prefeitura de Salvador participaram do cortejo acompanhados do séquito
de cabos eleitorais, os professores estaduais há meses em greve se
manifestavam contra a retirada de direitos e pela melhoria das condições
na educação. No ano seguinte, os simpatizantes das manifestações que
cobriram o País desde junho se expressaram contra os gastos na Copa do
Mundo, e levou as autoridades a isolar o início do cortejo com
contingente policial nunca visto na cerimônia de abertura. Não sem
razão: de maneira festiva, o 2 de julho torna presente a
luta e os anseios por independências que ainda precisam ser alcançadas.
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